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1 de abril de 2011

Visão atua sobre o autismo: um conceito em transformação

As mudanças na forma de conceber o autismo estão ainda intimamente atreladas às mudanças conceituais na Psiquiatria, especialmente concernentes ao diagnóstico e classificação, mais recentemente à pesquisa em diversas disciplinas.

Fazendo um breve resumo do prefácio do manual de Almeida e cols (1996):

- Somente em meados do século XIX, a doença mental passou a ser objeto de estudo e investigação sistemática, especialmente na Europa, passando por um “período científico-naturalista”. Como a medicina orgânica, a medicina mental tentou inicialmente decifrar a essência da doença agrupando os sinais que a indicavam, constituindo-se assim uma sintomatologia. Por outro lado, constituiu-se também uma nosografia, onde são analisadas as próprias formas da doença, descritas as fases de evolução e restituídas as variantes que ela possa apresentar. Podemos ser dito que Kraepelin e Freud ajudaram a delimitar a abordagem clínica da doença mental do ponto de vista biológico e psicológico, respectivamente. Entretanto, a introdução do método fenomenológico por Karl Jaspers (1883-1969) contribuiu para estabelecer as bases da psicopatologia moderna.

- A partir do final da década de 40, a psiquiatria passa para a “era dos psicotrópicos”, a partir da descrição de John Cage da surpreendente eficácia dos sais de lítio no tratamento de pacientes com transtorno bipolar do humor. Sendo assim, num período de 10 anos, três grandes classes farmacológicas haviam sido descritas: antimaníacos, antipsicóticos e antidepressivos - tendo tal impacto sobre o tratamento e compreensão da doença mental, que estes nunca mais seriam os mesmos (Almeida e cols, 1996). Com a ajuda da medicação, o número de leitos e asilos psiquiátricos caiu vertiginosamente nas décadas subseqüentes, culminando na “era do cuidado comunitário”.

- A partir dos anos 60 e 70, o tratamento de pessoas com transtornos mentais migrou dos asilos para os ambulatórios, e em alguns locais, para a própria comunidade. Sendo que um dos objetivos do tratamento seria a reinserção plena do doente mental. Surge então, a antipsiquiatria, que questionava a própria razão de ser da psiquiatria, ou seja, questionava a existência da doença mental.

- Atualmente a psiquiatria estaria embarcando na “era científica”, onde uma relação mais direta entre clínica e pesquisa, aliada a novas “armas metodológicas” seriam promotoras potenciais de avanços significativos na clínica, manejo e investigação das doenças mentais. Salientam a importância do descobrimento dos fatores de risco e etiológicos das doenças mentais. Em relação à metodologia destacam: a) o aperfeiçoamento das técnicas de investigação epidemiológica, quanto ao delineamento e instrumentos de investigação e análise, incluindo técnicas estatísticas sofisticadas; b) a modificação das técnicas usadas em ensaios clínicos permitindo a avaliação da eficácia e efeitos colaterais de novos grupos de psicofármacos; c) a introdução de métodos de neuroimagem funcional e estrutural viabilizando o estudo do cérebro de pacientes acometidos in vivo; d) estudos anatômicos usando técnicas imuno-químicas têm permitido a abertura de novas perspectivas de compreensão de várias doenças mentais e e) técnicas de genética e biologia molecular têm sido usadas para desvendar os genes e a patogênese envolvidos em diversas doenças mentais. Observam que a partir deste momento a psiquiatria tornou-se uma especialidade multidisciplinar extremamente complexa.

- Concluem que ao que tudo indica, até o momento, foram dados apenas os primeiros passos para o que possa vir a ser uma reformulação radical da noção de doença mental. Entretanto, as grandes questões filosóficas permanecem, por exemplo, a relação mente/cérebro e objetivo/subjetivo ainda não foi resolvida.

A este respeito Sonenreich (1996) comenta a necessidade da psiquiatria de não se fixar em ideais como: “tudo parte da observação e a descrição rigorosa é o único instrumento científico” (p.2). Também enfatiza a necessidade de superação do dualismo:

“Na psiquiatria falamos de atividade psíquica e atividade cerebral como se fossem realidades em si, diferentes, precisando ser abordadas por instrumentos diferentes.Quem quer ultrapassar o dualismo acha que deve ou considerar a mente como produto do cérebro, ou o cérebro como produto da mente. Os estudos neurofisiológicos demonstram de maneira convincente que noções como causa-efeito, antes-depois, parte-todo, psicogênico-biológico precisam ser reformuladas. Falar de processos cerebrais e processos psíquicos é adotar certo modo de encarar os problemas, certo ponto de vista, certo nível de abordagem. Não significa que tratamos de realidades diferentes, eventualmente independentes. Para nos, a psiquiatria é um corpo de saber científico que se aplica a uma realidade, mas não se identifica com ela, não decorre dela. Como a física, a matemática: são ciências e não a mesma coisa que o objeto estudado, medido, calculado” (Sonenreich, 1996 p. 2).

Sistemas Atuais de Classificação em Psiquiatria

Os sistemas classificatórios mais usados em nossos dias e praticamente “oficiais” para pesquisa, periodicamente revisados e representando um consenso entre profissionais são o DSM – “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders[1]”, desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria e o CID - Classificação Internacional de Doenças, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde. Atualmente DSM encontra-se na 4ª versão (DSM-IV), ou 5ª versão se consideramos o DSM-IV-TR (2002), e o CID na 10ª versão.

Segundo Jorge (1996), é tido como o ideal uma classificação etiológica baseada na compreensão patogênica da cada transtorno mental. Entretanto considera esta tarefa um tanto difícil, em face à multiplicidade de fatores que determinam o aparecimento de um transtorno mental. Segundo Lotufo Neto e cols (1995), a psiquiatria está na fase de descrição de síndromes – ou a etiologia não é conhecida, ou quando conhecida, ela é multifatorial.

Segundo Campos (1999), o objetivo principal dos códigos de classificação é possibilitar a comunicação dentre os diversos tipos de profissionais não somente pesquisadores, mas também clínicos e institucionais. Existe também a afirmação, contestável, que por serem descritivos – dando ênfase nos comportamentos e achados clínicos - os manuais seriam “ateóricos”, podendo então ser usados por profissionais independentemente da orientação.

Os códigos de classificação das doenças mentais optaram pela descrição dos quadros. Ao invés de operar com entidades nosológicas[2], estes sistemas têm preferido operar com descrições sindrômicas, devido à dificuldade de se estabelecer uma relação de causa e efeito entre os fatos e as manifestações. Sendo assim, sinais e sintomas devem ser agrupados de forma a constituir uma síndrome, que terá diferentes padrões de evolução na dependência das múltiplas causas que podem determiná-la. Desta forma, diversas doenças podem manifestar-se através de um mesmo quadro sindrômico. Por esta razão, os atuais sistemas de classificação têm usado o termo “transtornos” (“disorders”) mentais e não “doenças” mentais. Segundo a definição do CID-10 (OMS, 1992), a definição de transtorno mental se refere a:

“...um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecíveis associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais” (p.5).

É importante ainda ressaltar que a definição do patológico em psiquiatria deriva de duas posições clássicas da Medicina:

1. A medicina Hipocrática é dimensional, entendendo a doença como um estado em um continuum que também inclui a sanidade.

2. A medicina Platônica é categorial, definindo as doenças como estados típicos, distintos uns dos outros e do estado de sanidade. Ela nos remete a entidades discretas, com limites claros e qualitativamente definidos. No entanto há dois modelos de classificação categorial:
a. Clássica ou tradicional - é um modelo determinístico, onde a pertinência é homogênea, os limites são distintos e se ajustam perfeitamente às categorias;
b. Prototípica - é um modelo probabilístico, onde a pertinência é heterogênea, os limites se sobrepõem e se ajustam apenas parcialmente às categorias.

A proposta dos atuais sistemas de classificação tende se ajustar mais ao segundo modelo (platônico, categorial e prototípico), onde seus constituintes são protótipos de transtornos mentais (Jorge, 1996).

Etmologicamente o termo diagnóstico tem origem grega e significa reconhecimento. Ele deveria ter os seguintes objetivos e funções: constituir uma categoria para o conhecimento, se constituir em instrumento de comunicação, possibilitar uma previsão (prognóstico) e se constituir em fundamento de uma atividade (função social do diagnóstico). Estes têm o papel de orientar as condutas terapêuticas e de se prestar à definição de políticas de saúde adequadas ao perfil nosológico de uma determinada coletividade (Jorge, 1996). Em psiquiatria o processo diagnóstico envolve as diversas fases componentes de uma avaliação psiquiátrica.

Evolução da Terminologia, classificação e construção do conceito

Em conceito o diagnóstico de autismo não mudou substancialmente desde a primeira formulação, ocorreram sim muitas mudanças na maneira de interpretá-lo, o que resultou num número muito maior de pessoas diagnosticadas com autismo (Tager-Flusberg, Joseph e Folstein, 2001) .

Durante as últimas décadas as mudanças nos conceitos de autismo têm sido “capturadas” nas diferentes edições do DSM e do CID. Cabe aqui lembrar que a Escola Psiquiátrica Francesa remete o autismo a um defeito na organização ou desorganização da personalidade, mantendo-se fiel à concepção do que foi o termo psicose (Houzel, apud Assumpção Jr., 1995). Da mesma forma que a nona revisão do CID (Misés, apud Assumpção Jr., 1995).

Nos sistemas de classificação oficiais o termo “autismo” como condição de acometimento na infância, só aparece após mais de 20 anos da primeira publicação de Kanner. Na primeira menção, no CID-8[3], é classificado com um subgrupo das esquizofrenias (Wing e Potter, 2002).

As primeiras alterações desta concepção surgem em 1976, a partir do famoso livro de Ritvo sobre autismo, onde ele associa o autismo a déficits cognitivos, considerando-o um distúrbio do desenvolvimento e não uma psicose (Assumpção Jr, 1995; Assumpção Jr e Pimentel, 2000).

Em 1979, Wing e Gould terminaram o famoso estudo epidemiológico de Camberwell. O objetivo do estudo foi de

Investigar toda a amplitude de fenômenos clínicos nas crianças para verificar se as síndromes nomeadas na literatura poderiam ser identificadas e separadas umas das outras e de outros transtornos da infância. Para observar qualquer mudança que poderia ocorrer com a passagem do tempo as crianças foram então acompanhadas até a adolescência ou início da vida adulta.

Uma limitação deste estudo foi que as crianças elegíveis foram procuradas somente dentre aquelas que freqüentando escolas especiais e classes especiais. Conseguiram detectar um grupo de crianças que apresentavam perturbações sociais e interação social comprometida e anormal para qualquer idade mental. Seus níveis de inteligência abrangiam toda a amplitude, desde retardo profundo até normal, embora a maioria tinha retardo mental. O comprometimento social deste grupo estava diretamente associado aos comprometimentos da interação social, da comunicação social de duas vias (bidirecional) e imaginação social.

A “Tríade de comprometimentos"

- Interação Social
- Comunicação Imaginação
- Comportamento: rígido, repetitivo e estereotipado

A partir de pesquisas realidades na década de 1970 e destes resultados, e do interesse no trabalho de Asperger, Wing e Gould (1979) formularam inicialmente a noção de um continuum de gradação nitidamente relacionada com o grau de comprometimento cognitivo - e posteriormente nomeado de espectro do autismo (Gillberg e Gillberg, 1989) - cujas características essenciais comuns seria a noção de “Tríade de Comprometimentos” da interação social, comunicação e imaginação (Wing, 2005). A presença da tríade produziria um padrão de atividades e interesses rígidos, repetitivos e estereotipados (Quadro 1)

a. Existem outras características clínicas vistas em transtornos do continuum do autismo, não mencionadas nas várias séries de critérios essenciais para o diagnóstico.

b. As manifestações de cada item (numerados de 1 a 4 sob cada legenda) são pontos escolhidos arbitrariamente ao longo do continuum. Na verdade, cada um se mistura ao outro sem quaisquer divisões claras

O DSM-III (APA, 1980), marcou uma mudança importante no conceito de “autismo infantil”. Se nas edições anteriores do DSM (APA, 1952, 1968) o termo esquizofrenia infantil descrevia as crianças autísticas, a partir do DRM-III (APA, 1980), o autismo passou a fazer parte de uma nova classe de distúrbios com início na infância. Foi inserido na categoria geral das “Pervasive developmental disorders” - traduzida para o português como “distúrbios invasivos do desenvolvimento”, “distúrbios abrangentes do desenvolvimento” ou ainda “distúrbios globais do desenvolvimento”. O autismo saiu então das asas da esquizofrenia e das psicoses, para ser concebido como um transtorno do desenvolvimento.

Alguns autores observam que o conceito de “Pervasive developmental disorders” foi uma “tradução” um pouco diferente da tríade de Wing. O termo “persavive”, conservado pelas classificações oficiais, refere-se à idéia de que os comprometimentos da tríade “penetrariam ou atravessariam” todas as esferas da vida da criança, sendo provenientes de um distúrbio do desenvolvimento (Szatmari, 2000; Tisdmarsh e Volkmar, 2003).


FONTE: http://www.ama.org.br/html/info_visa.php

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